Desabafo de uma produtora de Mirtilos

Reforma Agrária25 agosto 2018

"O sabor e a qualidade tão importantes para as pessoas que compram a fruta cara a cara ao agricultor. O sabor e a qualidade tão insignificantes para o mercado. O mercado indiferente a quase tudo. As empresas, as cooperativas a não atenderem os telefones. A ignorarem os apelos desesperados dos agricultores. Ou então, a oferecerem preços demasiado baixos, inferiores aos custos de produção."

Ângela Leitão Santos

Desabafo de Ângela Leitão Santos
Produtora de Mirtilos

Um ano de trabalho deitado fora. Um ano de trabalho intenso, sempre a cuidar das minhas plantas.

Carrego um vazio dentro de mim. Um vazio tão grande que não deixa espaço para mais nada. Um vazio que me arrasa, que me preenche, que me esmaga. Um vazio que me corrói. 
Um vazio parecido com aquele que sentimos quando somos estudantes e terminam os exames. Uma espécie de peso na consciência por estarmos livres e não sabermos o que fazer com essa nova condição. Mas este vazio é pior.

Terminei um ciclo. Um ciclo que correu mal. Um ano de trabalho deitado fora. Um ano de trabalho intenso, sempre a cuidar das minhas plantas. Queria que dessem os melhores frutos. E deram. Apesar da chuva, do frio tardio e de todas as partidas da natureza. Os frutos vingaram. Bonitos como sempre. Saborosos como sempre. 

De todos os lados a choverem elogios. O sabor e a qualidade tão importantes para o agricultor. O sabor e a qualidade tão importantes para as pessoas que compram a fruta cara a cara ao agricultor. O sabor e a qualidade tão insignificantes para o mercado.

O mercado indiferente a quase tudo. O mercado a exigir preços baixos. Só a querer fruta bonita e resistente.

O mercado indiferente a quase tudo. O mercado a exigir preços baixos. Só a querer fruta bonita e resistente. Mesmo que colhida verde, mesmo que ácida e sem sabor. O mercado, cruel, a fechar-se para mim e para tantos outros. As empresas, as cooperativas a não atenderem os telefones. A ignorarem os apelos desesperados dos agricultores. Ou então, a oferecerem preços demasiado baixos, inferiores aos custos de produção

E a fruta, aquela fruta tão bonita a amadurecer nas árvores. A amadurecer cada vez mais. Aqueles frutos perfeitos e doces, de repente a deixarem de o ser. De um momento para o outro a apodrecerem. Aqueles frutos que parecem tão bonitos à saída do pomar. Passadas umas horas, moles, azedos, a desfazerem-se. Primeiro eu sem perceber, talvez sem querer perceber. A pensar em podridão, ou talvez em excesso de água. Mas depois tive de perceber. Era por demais evidente. 

Drosophila, a mosca malvada. Uma praga monumental a arrasar o meu pomar. Impossível vender fruta em fresco. Impossível vender fruta para transformação. Eu a ter de tomar uma decisão. Uma decisão que me doeu tanto. Que ainda dói tanto. Eu e as minhas colhedoras, a colher de uma vez só toda aquela fruta e a deitá-la fora. E, logo a seguir a enterrá-la como se faz aos mortos. 

Entretanto o mercado abriu. As empresas de repente interessadas em receber fruta, a atenderem telefones novamente. Mas para mim não havia nada a fazer. A fruta estava morta e enterrada, era já demasiado tarde.

Mais um ano de trabalho pela frente na esperança de qualquer coisa melhor.

Olho para a frente e vejo um novo ciclo. O vazio desaparece. E um cansaço toma conta de mim. Mais um ano de trabalho pela frente na esperança de qualquer coisa melhor. Olho para trás e vejo um prejuízo enorme.

Um ano de trabalho perdido. Olho para trás e vejo os sorrisos das pessoas, deliciadas com a minha fruta. E o empenho da minha equipa a querer salvar o pomar. Olho para trás, para há dois dias atrás e vejo as minhas colhedores reunidas em volta de mim a dizerem-me o que eu não queria ouvir. "Gostamos muito de cá andar, mas não assim.

Está a ter prejuízo. Não podemos continuar assim.Temos de parar.

As letras do ecrã, estão menos nítidas. A minha visão está turva. Os meus olhos estão embaciados.

Isto é o melhor de tudo. As pessoas. Os meus colhedores. Os meus clientes fieis. Aqueles que preferem comprar-me a fruta directamente a mim a ir buscá-la aos hipermercados. Mesmo que lhes dê mais trabalho. Mesmo que às vezes lhes fique um pouco mais caro. Penso em todos eles e quase me cai uma lágrima. Seguro-a. Tenho tanto a fazer no meu pomar.

Produtora de Mirtilos
Produtora de Mirtilos - Autora deste desabafo, que espelha a realidade do sector. Uma realidade que todos insistimos em ignorar, quando optamos pela comodidade de comprar aos intermediários, nas grandes superfícies comerciais.

Para contactar a Ângela Leitão Santos:

Perfil no Facebook https://www.facebook.com/angela.santos.92505

Grupo de Produtores de Mirtilos https://www.facebook.com/groups/produtoresmirtilos/

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